O economista Paul Singer morreu nesta segunda-feira (16) aos 86 anos deixando uma rica bagagem de conhecimento ao país que o acolheu em 24 de março de 1940. “Lembro exatamente a data em que aportamos em Santos, no dia em que completei 8 anos. Minha família (fugida da Áustria anexada pela Alemanha de Hitler) estava tão extasiada por conseguir chegar que o único que se lembrou do meu aniversário fui eu mesmo”, contou Singer, numa entrevista de anos atrás à Rádio Brasil Atual.
O professor da Universidade de São Paulo, identificado como um dos fundadores do PT, tem na realidade uma história anterior a esse feito, que faz dessa passagem apenas a evolução prática de uma utopia realizável.
Como professor, Singer contribuiu delicada e efetivamente para a construção de um pensamento crítico socialista baseado não apenas na desconstrução dos modelos econômicos que estariam levando o planeta ao abismo. O mestre da economia solidária foi um esquerdista que trabalhou, mais do que em teorias demolidoras, a perspectiva de poder como forma de mexer com as estruturas que gerenciam o mundo. Traduzindo: ele não queria produzir artigos acadêmicos discursivos para esculhambar o gestor econômico de plantão; queria criar elementos, e criou, que comprovassem que uma outra economia é possível.
Paul Singer não gostava de ver a economia solidária ser tratada como uma ciência “alternativa”. Seria, para ele, a forma mais efetiva de socialismo praticável num mundo contemporâneo rachado entre o triunfo do capitalismo selvagem – que hoje atende pelo nome de neoliberalismo – e o fracasso do socialismo totalitário, mal batizado de socialismo científico como forma de desqualificar o também mal batizado de socialismo utópico.
Ao desenvolver a perspectiva de poder como meio de pôr em prática a teoria que desenvolvera ao longo da vida, o professor ajudou a criar e chefiou a Secretaria Nacional de Economia Solidária (Senaes), vinculada ao Ministério do Trabalho. Ocupou o posto desde o primeiro ano de governo de Luiz Inácio Lula da Silva, em 2003, até 2016 – sobrevivendo a seis trocas de ministro, mas não ao golpe que derrubou Dilma Rousseff. Ali brigou por recursos públicos em apoio ao empreendedorismo de gestão coletiva e resultados compartilhados. Batalhou para que esse modelo de gestão, que punha o atendimento da necessidade humana à frente da acumulação, fosse atendido com crédito pagável e para que as pessoas fossem instruídas pelo Estado sobre como gerenciá-lo.
Em 2004, ao produzir campanhas de estímulo à economia solidária, a Senaes de Singer adotou o slogan “outra economia é possível”, fingindo uma alusão ao Fórum Social Mundial enquanto na realidade se posicionava contra a condução da economia chefiada pelo então ministro da Fazenda, Antonio Palocci. Ricardo Berzoini, titular do Ministério do Trabalho, ficou do lado certo da história.
Viriam depois a produção de leis de incentivo ao microcrédito, a transversalidade do cooperativismo solidário na formulação de políticas para a juventude, para a qualificação profissional, para o combate à escravidão contemporânea. E o duro trabalho de convencimento de que não bastava produzir de modo cooperativo, era preciso escoar a produção por meio do comércio justo – o que significa em muitos casos pagar um pouco mais sabendo que o preço e a procedência dessa mercadoria têm a ver com a conservação do planeta para nossos netos.
Toda produção intelectual de Paul Singer foi absolutamente voltada para ser posta em prática. Esquerdista dos bons, o professor nunca deu margem de manobra para que suas utopias executáveis se limitassem a abastecer discursos pseudo esquerdistas baseados na negação de tudo. O mestre da economia ensinou que o que merece ser idealizado, o merece para ser realizado. Daí a tolerância, durante tantos anos, com uma coalizão indesejada, porém necessária.
O mundo fica agora à espera do documentário de Ugo Giorgetti – Paul Singer – Uma História do Brasil. Idealizado por pessoas próximas do professor no ano passado, o projeto de financiamento coletivo (tinha de ser assim um filme sobre ele) foi aceito pelo cineasta especializado na crônica paulistana pela satisfação de registrar o pensamento do professor. “Um personagem que nos leva a refletir sobre o presente, o passado e o futuro do Brasil e do mundo. O filme é também, inevitavelmente, um retrato intelectual da própria cidade de São Paulo em anos particularmente conturbados”, definiu Giorgetti.
“Coerência à flor da pele”, título da entrevista concedida por Paul Singer à edição número 1 da Revista do Brasil, há 12 anos, tentava traduzir esse homem que almoçava com a equipe no mal afamado bandejão do Ministério do Trabalho – apelidado de “morte lenta” –, viajava na falida BRA para ficar com a família em São Paulo em alguns fins de semana, e queria, sim, o poder, por isso se tornou um dos fundadores do PT e ajudou a construir caminhos para a herança bendita deixada pelos governos de Lula e Dilma. Ainda que tivesse de dividir esse poder, e disputá-lo, com forças políticas indignas de sua biografia.
Se agora estiverem sentados à mesma mesa Singer, Antonio Candido, Florestan Fernandes e Octavio Ianni, estarão procurando um porta-voz que leve ao operário preso injustamente em Curitiba – quem sabe por tentar pôr em prática suas teorias – uma palavra de conforto e esperança.
Fonte: RBA – Edição: Alex Glaser