“Esse projeto da esquerda [de desenvolver a burguesia interna] sempre deu errado e terminou em golpes de Estado. Todas as vezes.”
Camila Rodrigues da Silva Brasil de Fato
O impeachment, segundo ex-presidente do IPEA e professor da Universidade Federal Fluminense (UFF), Jessé Souza, foi um golpe que começou a ser articulado em 2013, após as frações do capital se unirem contra as medidas de enfrentamento dos juros por Dilma, entre março de 2012 e abril de 2013.
A análise faz parte do livro “Radiografia do golpe” (editora Leya, 2016, 144 páginas), lançado por Souza na semana em que o Senado decidiu afastar definitivamente a presidenta eleita Dilma Rousseff.
Para o professor, as Jornadas de Junho, dois meses depois, foram usadas pela classe proprietária (financeira, comercial, industrial e agropecuária) na retomada do crescimento dos juros.
O argumento é que essa classe dominante manipulou o medo e o ódio que a classe média tem dos pobres a favor de seus próprios interesses, no mesmo período das Jornadas de Junho.
Para isso, usou a grande mídia comercial para elaborar uma narrativa que construiu um herói do Judiciário – o juiz Sérgio Moro – que combateria o vilão Lula, uma personificação da raiva de uma classe que vê seus privilégios ameaçados. O enredo tem como fundo a Operação Lava Jato.
Confira a entrevista na íntegra:
Jessé Souza – Como a estrutura de formação de classe se expressa no golpe?
Brasil de Fato – O ‘jogo das elites’ é o mesmo de sempre. O Brasil sempre se mostra como uma sociedade em que o escravismo e a forma como a elite e as classes dirigentes se relacionam com o povo vai da indiferença ao ódio.
As elites, os endinheirados, são indiferentes ao que acontece com a população, o que é tipicamente o sentimento das elites escravocratas. Isso não é a forma normal em várias sociedades modernas, onde a elite teve que formular projetos nacionais de longo prazo, como no Japão, Coreia, que remodelou o país a partir disso e tornou o país muito mais rico. É uma elite inteligente. Nossa elite é burra, é uma elite do curto prazo, é do “deixa eu tirar o meu aqui e agora, rápido e dane-se o resto”.
Quanto à classe média, é pior ainda. Como ela tem o medo irracional em relação ao povo, principalmente a quem ascendeu socialmente nos últimos anos, e a política também é construída a partir desses medos irracionais, ela tem ódio do povo – ao contrário da elite.
E a polícia é quem faz o serviço sujo para essa classe média conservadora e protofascista que nós temos.
A classe média se incomoda com a maior proximidade física dos pobres, que agora têm maior poder de compra, que podem ir aos shoppings e aeroportos… Isso gerou todo tipo de irritação, mas uma irritação pré-política, que não se pode transformar em discurso porque não seria legítimo em lugar nenhum. Não é legítimo em lugar nenhum ser contra a luta contra a desigualdade.
Então, não se tinha nada para ser contraposto às políticas do PT a à figura do Lula. O que a mídia conservadora, então, construiu? Uma justificativa pseudo-racional, ou seja, um artefato para transformar esse ódio irracional em uma bandeira política.
Eu fiz a análise do Jornal Nacional todos os dias durante os protestos de junho de 2013, quando começou a ser construída a base social do golpe. Ali se viu chamadas de uma nova estética e a transformação dessa fração de classe média, que é conservadora e que sempre votou contra o PT, sendo transformada no “povo nas ruas”. Um povo com sede de democracia.
É um mecanismo tipicamente fascista. A classe dirigente usa o medo das classes médias a seu favor e a transforma em tropa de choque do interesse dos ricos. Foi exatamente isso que foi feito. É do interesse dos ricos o desmonte do Estado, porque dá dinheiro vender saúde, educação, etc.
É possível afirmar que os agentes da elite conseguem induzir uma crise após as eleições de 2014?
Foi exatamente isso o que aconteceu. Isso porque, nos governos petistas, houve uma inflexão importante. Lula compreendeu que, se quisesse fazer alguma coisa em termos de redistribuição, não só de renda mas de capital cultural, tinha que deixar o rentismo correndo solto. Por isso, ele colocou [Henrique] Meireles no Banco Central, para conseguir montar outras medidas. Enquanto tinha o boom das commodities, deu certo.
Dilma, eventualmente, percebeu que esse ciclo iria acabar e disse: “Vou ter que tocar na matriz de acumulação de capital”, ou seja, “vou ter que controlar os juros para que isso possa causar, de algum modo, o revigoramento da indústria nacional e criar um mercado interno potente”, que estava sendo construído nessa época.
Só que, ao se colocar contra os juros, a esperança dela era ter a fração industrial ao seu lado. Mas esta e todas as outras frações do capital, como o comércio e o agronegócio, já estavam confiando a parte mais gorda de seus ganhos em juros, ou seja, todos estavam investindo no rentismo.
Todas as classes proprietárias são rentistas, e até a capa superior da classe média tem alguns de seus milhões investidos. Então, há um verdadeiro interesse racional na continuação disso.
E o que o juro cria? É isso que as pessoas têm que entender para ver como funciona a dominação econômica e social entre nós.
Os juros estão acoplados a cada bem e serviço que cada um de nós compra. Se os juros são os maiores do planeta, como é o nosso caso, e se o mercado inteiro está montado sobre crédito e juros, ocorre uma drenagem invisível de todos os bolsos para a meia dúzia de bolsos de rentistas.
Quando Dilma ataca o tema do juros, e ela o faz frontalmente em março de 2012, e perde a batalha de um ano, em abril de 2013, quando os juros voltam a subir, a classe proprietária inteira se une contra ela.
A partir daí, a desconfiança [da classe proprietária] com o governo do PT, que sempre existiu, permitiu serrar fileiras contra a presidente.
É muito interessante ver a ocasião histórica. Os juros voltam a subir em abril de 2013, e as manifestações foram junho do mesmo ano. A Fiesp, que publica uma carta de apoio ao governo em março ou abril de 2013, em junho se veste de verde e amarelo ao perceber que a correlação de forças mudou.
E aí você tem as forças do rentismo juntas, com um nova base social criada pelo medo e pelo ressentimento da ascensão popular. Obviamente não é raiva de Lula, ninguém tem raiva de um indivíduo. É raiva do que ele representa. Daí, você diz que esse cara é corrupto.
A corrupção, porém, vem do mercado e captura o sistema político. O mercado que é o grande corrupto desta história: engana, monta taxas arbitrárias, decididas politicamente, e diz que é para combater a inflação. Por quê? Porque está pagando 90% dos analistas econômicos que falam na TV e nos jornais. Ou seja, um engano, um engodo sistemático da realidade que só se vê nas ditaduras. Esse é o ponto.
Daí, você deixa o braço simbólico da elite do dinheiro, que é a imprensa, especialmente as grandes cadeias de televisão, agindo. Então, eu acho que o golpe aconteceu a partir de 2013, e a primeira tentativa de golpe foi o Mensalão.
Mas essa farsa está desmontada agora. Foi uma palhaçada com uma mídia que jogou todo seu capital de confiança nisso, um Congresso comprado para isso e o partido corporativo do Poder Judiciário servindo a esse fim. Ou seja, foi um grande engodo institucionalizado contra o povo.
Historicamente, quando a elite promove golpes de Estado, ocorrem conflitos entre as frações da burguesia. A Fiesp [Federação da Indústria de São Paulo] foi a principal articuladora da campanha pelo impeachment de Dilma, só que a maior parte das medidas que tem sido publicizadas pelo governo interino são para o setor agropecuário, por exemplo. Como estão se dando esses conflitos após o golpe?
Acho que agora vão começar a ter contradições que não existiam mais. Tem uma metáfora que eu uso logo no começo do livro que, quem já viu filme de máfia e gangster, conhece: ‘é fácil juntar aventureiros para assaltar um banco, difícil é depois dividir o botim’. E aí que acontecem as mortes e as traições. No assalto à soberania popular, é a mesma coisa.
Não foi pouco o que se fez. Se você assalta a soberania popular você deixa a democracia sem chão, porque o único princípio que vai garantir todas as outras ações é a soberania popular. Se não tiver, é um mero ato de força.
As pessoas não sabem o que efetivamente aconteceu, nem quem cometeu esta atrocidade. E aí, como todo assalto a banco, o assalto à soberania popular também cria uma batalha sobre o que fazer com isso. Todos os interesses tem que ser justificados.
Você não domina uma sociedade pela força e pelo engano apenas. Esse engano tem que ser bem feito. E se não for bem feito, ficou óbvia toda a farsa.
O poder Judiciário jogou seu capital de confiança. O sistema político, idem. Não vai dar para fazer uma grande pizza. E aí vamos ver a situação mais interessante nisso que é o botim, especialmente econômico. Todos os agentes estavam motivados por motivos econômicos, e isso vai criar uma situação a partir de agora muito conflitante.
O partido corporativo do Judiciário, por exemplo, foi cooptado pela imprensa. O Jornal Nacional fez isso de modo explícito, defendendo a PEC 37, que é uma lei autoritária.
Por que autoritária? Porque a ideia da Constituição de 1988 é que os diversos órgãos do aparato policial têm que se controlar mutuamente. E você só pode controlar mutuamente se um julga, o outro investiga, o outro denuncia, etc.. Um órgão não pode ter todas as atribuições, porque senão fica incontrolável.
Aí, essa turma que é da reprodução do privilégio é convidado a tirar onda de guardião da moralidade publica, e aceita esse papel. Por que aceita? Porque você pode se apropriar da agenda do Estado sem ter tido nenhum voto.
E como é uma casta, privilegiada, que se acha melhor do que outras, pensa que o povo é burro e assume esse papel de tutelar a sociedade.
Foi isso que o partido corporativo do poder Judiciário e do aparato policial fez: “Vamos tutelar a sociedade, mesmo que ela não nos tenha pedido isso. Mesmo que não tenhamos nenhum voto ou mandato para isso, porque isso é bom para a gente. Permite ganhar mais dinheiro, mais prestígio”.
É poder político dentro do Estado, que permite chantagear o sistema político, ameaças de vazamentos ilegais e etc..
No livro “Radiologia do Golpe”, você critica o pensamento da esquerda brasileira, que teria sido colonizado desde sua origem – você cita o exemplo do Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Hollanda, que teria um pensamento que demoniza o Estado. Como essas opções teóricas afetaram a atuação concreta da esquerda brasileira durante o desenvolvimento deste golpe?
Para esclarecer essa questão, temos que pensar que a gente é levado a uma falsa impressão de que as ideias não têm importância nenhuma, que só intelectuais malucos se importam com isso. Nada mais enganoso.
Todas as ações humanas, quer a gente tenha consciência disso ou não, são conformadas e justificadas por ideias elaboradas anteriormente. Juiz não cria nenhuma ideia, jornalista não cria nenhuma ideia, nem advogado ou economista.
Você pode ter ênfases pessoais, mas essas ideias são produções de especialistas, intelectuais, que se deitaram a isso, porque são questões complexas. Você tem que estudar 50 anos pra entender do que as coisas se tratam.
Como é uma produção de especialistas, essas ideias precisam se associar a interesses políticos para adquirirem importância prática, ou seja, para se tornarem importantes para a vida das pessoas.
Não tenho nada pessoal contra Sérgio Buarque, mas foi ele que inventou a ideia do “vira-lata brasileiro”, da oposição absurda entre o Estado, tido como ladrão, e o mercado, tido como santinho, e nós todos acreditamos e reproduzimos isso.
Até poucos anos atrás, só funcionário público podia ser passivo de crime de corrupção. Isso é absurdo!
Claro, não foi só ele. Teve o Fernando Henrique Cardoso, o Roberto DaMatta, Raimundo Faoro… Os pensadores conservadores são maioria entre nós.
No fundo, esse culturalismo que vai ser instaurado por Sérgio Buarque não é uma coisa de 1930. Ele nos domina até hoje. Tudo que está escrito nos jornais tem a ver com essas ideias. O programa político do PSDB é retirado 100% do Raízes do Brasil. Ao mesmo tempo, o nome da sala onde eu fui a uma conferência da Fundação Perseu Abramo, do PT, é Sérgio Buarque de Holanda.
É um negócio absurdo, ou são esquizofrênicos, porque isso mostra um pequeno exemplo de como a esquerda é colonizada por um discurso extremamente conservador, que não percebe como a sociedade de escravos continua.
Nós somos uma sociedade escravocrata, moldados por instituições. Mas aí você muda [a história], como se a corrupção viesse de Portugal, fosse cultural, fosse um dado brasileiro. E ainda tira uma onda de crítico, dizendo ‘olhem a roubalheira! Esse país nunca vai para frente’. Como se o americano não roubasse muito mais e de um modo muito mais profissional do que nós, legalizando a corrupção, criando mecanismos para isso, como os paraísos fiscais, por exemplo.
Você faz do brasileiro vira-lata e imbecil. Ele é servil em relação a outros povos, e isso foi Sérgio Buarque que criou.
E depois ele esconde toda a luta de classes entre nós, ele ginga esse conflito aparente e artificial entre Estado e mercado como sendo essa semântica possível de uma luta de classes que está escondida.
E é uma semântica que beneficia a elite. Porque se você diz que o Estado é o corrupto em si, então, quando ele vai ajudar as classes populares, ele pode sempre ser ameaça de golpe, a partir do argumento da corrupção seletiva. Foi o que aconteceu com Getúlio, com Jango, e agora com Lula e Dilma.
E a esquerda não aprende. Não teve conhecimento das medidas corporativas do Estado e apoiou a Lava Jato até a condução coercitiva de Lula, quando já era muito tarde para se opor. Foi ingênua, porque pensou o Estado como a direita pensa. Pensou a sociedade como a direita pensa.
Mas também temos autores críticos que fazem oposição a esse pensamento…
Mas isso é outra coisa. Esses autores que são importantes, como Celso Furtado, o próprio Florestan Fernandes, Caio Prado, etc., são excelentes, obviamente. A tradição deles é muito mais crítica do que essas do culturalismo, que é dominante, mas nenhum deles montou uma visão alternativa nem sobre o Estado nem sobre a sociedade.
Essa esquerda do pensamento foi economicista. Ficam no máximo com essa influência do marxismo que foi misturada com outras coisas. Daí, você leva à esquerda de hoje, que imagina que, se montar um projeto econômico, a sociedade vai mudar automaticamente.
Você não pode achar ingenuamente que, mudando a economia, todas as outras esferas vão mudar.
Se você pegar os marxistas hoje, quando eles pensam em classe, eles pensam na ocupação, como se a ocupação que você tem como adulto definisse a sua posição de classe. Isso é um completo absurdo! Porque sequer toca na questão da origem do porquê você escolhe ser pedreiro, como se fosse uma escolha, ou ser um empresário.
Isso tem a ver não só com a herança de capital econômico, tem a ver com o tipo de capital cultural, com o tipo de socialização familiar que vai te habilitar ou não a ser vencedor na escola, com o tipo de socialização emocional e afetiva de identificação com os pais vai inclinar você para certo tipo de emprego ou não.
Uma questão que existiu no pré golpe de 64 e se repetiu no governo do PT nos últimos doze anos é a confiança posta na ‘boa burguesia’. De que forma esse padrão se perpetuou no período recente?
A esquerda tentou montar uma política que era o sonho da esquerda brasileira, ou seja, você montar um acordo entre a classe trabalhadora, que fosse protegida e pudesse ter bons salários, com o empresário industrial nacional.
E apostou que essa fração da burguesia pudesse se descolar dos interesses da classe dos proprietários e se acoplar a um projeto associado a classes subalternas. E esse projeto da esquerda, entre nós, sempre deu errado e terminou em golpes de Estado. Todas as vezes.
Porque essa fração fica com seus irmãos por mil motivos: afetivos, casamentos, alianças e, especialmente, por interesse econômico. E também porque toda fração do capital confia seus ganhos ao capital financeiro, que é lá que vai dar muito dinheiro.
E o Estado não é capaz de dar tanto dinheiro quanto o capital financeiro.
Claro! O Estado não dá dinheiro, transfere. No caso, o Estado pode ser usado para dar mais dinheiro quando a elite financeira compra o Congresso, por exemplo.
Um fato que foi denunciado nos jornais é que o deputado Cunha tinha 200 deputados no bolso. Há o interesse dessa elite financeira em passar todas as suas demandas, como garantir que os ricos não sejam taxados. Querem ter as pessoas de sua confiança no Banco Central, na Fazenda.
Os ricos no capitalismo financeiro é quem têm dinheiro, mas eles não são taxados. Daí, você tem um Estado que não pode taxar quem tem dinheiro porque o capital financeiro comprou o Congresso e nunca vai passar uma lei assim.
Se você não pode taxar os ricos, que é quem tem dinheiro, o que o Estado, acuado, é obrigado a fazer? Pedir emprestado.
Aí você monta a dívida pública a juros estratosféricos e cria um novo mecanismo de drenagem, que leva recursos de toda a população para essa meia dúzia de rentistas, que é quem manda no país. Foi quem transformou o país em um ‘puteiro’.
Não importa ter lei, ter democracia popular. Não tem acordo mais. Eles querem o dinheiro no bolso. E o golpe significa, antes de tudo, isso.
EDIÇÃO: José Eduardo Bernardes