A série de Padilha parece uma sequência da saga do Capitão Nascimento. A polícia é novamente a única saída contra o “sistema”
A estreia da série O Mecanismo, de José Padilha, certamente despertou a curiosidade de muitos assinantes da Netflix desde a sexta-feira 23. Talvez porque experiências nesta área sempre prometam controvérsia. Avaliar a forma como personagens frescos em nossa memória foram retratados é incentivo suficiente para qualquer lado do campo político.
A última produção sobre a Operação Lava Jato, o filme Polícia Federal: A Lei é Para Todos, não se furtou a ser uma peça de propaganda das investigações. A própria instituição exposta no nome do longa emprestou carros, armas e instalações para criar uma narrativa romantizada da caçada ao ex-presidente Lula.
De partida, a série de Padilha tem algumas vantagens em relação ao release cinematográfico lançado no ano passado. A começar pela falta de patrocínio público de órgãos interessados. A série usa nomes adaptados para se referir a instituições nacionais como o Ministério Público Federal e a PF, chamados de MFP e Polícia Federativa.
Outro diferencial é o formato, vantajoso para acompanhar uma operação em andamento. Uma possível segunda temporada, ainda não confirmada pela Netflix, pode dar ao diretor algum conforto para observar os desdobramentos das investigações e suas consequências políticas.
Se conseguir renovar contratos para os próximos anos, Padilha pode ter a chance de cobrir os anos de governo de Michel Temer, a delação da JBS, as flechadas do ex-procurador geral Rodrigo Janot contra o presidente, a posição dúbia da atual PGR Raquel Dodge em relação a quem a indicou ao cargo, os depoimentos de Lula a Moro e sua condenação em segunda instância. Quem sabe também as eleições de 2018, e seu resultado cada vez mais imprevisível.
Por enquanto, Padilha abarcou apenas parte da história, e o fez com diversas distorções factuais. A série inicia-se no caso Banestado, quando o doleiro Alberto Youssef escapou da prisão graças a um acordo de delação premiada de repercussão quase nula. Ao começar a contar essa história a partir de 2003, não menciona que o doleiro já operava nos governos de Fernando Henrique Carodoso. A narrativa salta para 2013, ao virem à tona as operações de evasão de divisas controladas por Youssef e Carlos Habib Chater, dono do famoso “Posto da Torre” que inspirou o nome da operação.
Os oito episódios da série terminam em 2015, após a eleição de Dilma Rousseff e em meio à prisão de grande parte dos empreiteiros brasileiros na operação “Juízo Final”. Há muito ainda para se contar.
E como Padilha contou essa primeira parte da história? Na última frase de Tropa de Elite 2: O Inimigo Agora é Outro, de oito anos atrás, o capitão Nascimento já resumia a tese da série lançada em março deste ano: “o sistema é foda”.
É impossível não associar as últimas cenas do filme de 2010 a O Mecanismo. O “herói” do Batalhão de Operações Especiais da Polícia Militar criado por Padilha e interpretado por Wagner Moura conseguira “colocar um monte de corrupto” na cadeia, mas “o sistema” era “muito maior” do que ele pensava. O discurso é intercalado com imagens aéreas de Brasília.
Não parece haver muita diferença entre o “sistema” do Capitão Nascimento e o “mecanismo” descrito pelo delegado da Polícia Federal Marco Ruffo, interpretado por Selton Mello. Logo na primeira cena da série, uma narrativa em off do delegado, recurso comum nos longas de Padilha, recupera em tom crítico o primeiro e segundo Tropa de Elite.
“No Brasil, as pessoas pensam que ser policial é subir favela e trocar tiro com traficante”, comenta Ruffo. “Isso não é ser policial, isso é ser policial burro”. A mensagem é clara. Sai a ética do Bope, de enfrentamento contra o tráfico e e a corrupção policial, entra a ética da PF, de investigar a corrupção de Brasília como a causa maior de nossos problemas.
Com esse viés, assiste-se novamente a uma romantização da atuação da polícia. Ruffo e Verena, agente federal interpretada por Caroline Abras, são incorruptíveis como o Capitão Nascimento. São até menos controversos que o personagem de Moura, apesar de alguns desvios maquiavélicos pelo bem de suas investigações. O Ruffo de Selton Mello domina de forma tão completa os passos da Lava Jato que sequer parece um personagem, mas uma entidade onisciente, sempre alerta aos movimentos de seus alvos.
A ausência de verossimilhança nos agentes federais causa mais estranhamento porque os outros personagens da Força Tarefa da Lava Jato de Curitiba são retratados de forma mais sóbria. O Sérgio Moro e os procuradores de Curitiba da série são vaidosos como na vida real. Impressionam-se com panelas sendo batidas e acreditam na versão dos delatores de forma ingênua, para desgosto dos agentes federais, que veem todos, do doleiro ao presidente, como bandidos.
Em nome de policiais incorruptíveis, ou juízes e procuradores vaidosos, mas ainda assim corajosos, a classe política de Padilha é só parte do “mecanismo”. Ela é ainda mais inverossímel. Não há nada que os mobilize para além da Lava Jato. Todas as decisões dos fictícios Lula, Dilma, Aécio Neves e Michel Temer são para escapar das investigações. Não importa “se é de esquerda ou direita”, deixam claro os policiais: nenhum deles vale qualquer coisa. Essa generalização antipolítica, tão comum em comentários nas redes sociais, é transportada para a série sem grande refinamento.
O Lula da série, interpretado por Arthur Kohl, é um obcecado pela Lava Jato desde a prisão de Paulo Roberto Costa. Cabe ao ex-presidente fictício falar em “estancar a sangria”, embora todos saibam que a célebre frase é do senador Romero Jucá, gravado em uma conversa com Sérgio Machado a defender a ascensão de Temer ao poder e um acordo com “O Supremo, com tudo”.
Por outro lado, Aécio Neves também é retratado como personagem unidimensional. É apenas um corrupto que quer ser eleito para interromper a operação. O personagem Ruffo defende que a eleição de Dilma em 2014 criava mais problemas para as grandes empreiteiras e a classe política, pois ela não tinha a disposição de interferir nas investigações como seus pares. Na sua leitura, o tucano nada mais é que o líder da operação abafa.
Apesar de Padilha ter reconhecido a convicção de Dilma em não interferir na Lava Jato, a ex-presidenta não gostou nada da série. Em nota, chamou-a de “mentirosa e dissimulada”. Ela apontou diversas imprecisões factuais da produção, entre elas a presença de Youssef em seu comitê de campanha, a fala de Lula sobre “estancar a sangria” e a “fake news” de que Márcio Thomaz Bastos, ex-ministro da Justiça, teria advogado em favor do doleiro em 2003.
Há muitas invenções políticas na produção, mas isso não é necessariamente seu maior defeito. É compreensível algum nível de liberdade poética para retratar conversas palacianas, mas as imprecisões factuais como recurso dramático são desnecessárias. Pior: ao desidratar a complexidade do jogo político sob o olhar simplista do investigador, o cineasta torna a série demasiadamente parcial. Parcial não porque defenda o PT, o PSDB ou o PMDB, mas por retratar com reverência os investigadores e superficialmente a classe política.
Seria estranho não esperar isso de uma série de Padilha, que jamais deixou de valorizar o olhar policial em sua filmografia. É sem dúvida uma fórmula popular, bem ao estilo norte-americano, a de tratar as forças de segurança, formais ou não, como únicos heróis possíveis na “Gotham City” de Brasília.
Quem não se lembra do parlamentar e ativista de direitos humanos retratado pelo cineasta em Tropa de Elite 2, incapaz de fazer a diferença a não ser pela intervenção final do Capitão Nascimento? A política, para Padilha e tantos brasileiros, parece ter virado apenas caso de polícia.
Informações: texto de Miguel Martins