Há duas tragédias anunciadas quanto à jornada intermitente de trabalho.
Primeiro, no que diz respeito à qualidade de vida dos trabalhadores envolvidos. Quando alguém assina um contrato com jornada intermitente ou “jornada zero hora” fica à disposição do empregador, recebendo apenas pelas horas trabalhadas. Que pode ser nenhuma. Essa possibilidade, trazida pela Reforma Trabalhista desde novembro passado, pode ser muito boa para alguns empregadores que terão sempre alguém de “sobreaviso” à sua disposição, mas ruim para uma parte dos trabalhadores que terão segurança zero.
Trabalhadores que tiverem um ou mais contratos intermitentes de trabalho e, no final de um mês, não conseguirem juntar ao menos um salário mínimo somando todos eles, não terão esse mês contado para fins de cálculo da aposentadoria, nem para manutenção da qualidade de segurado da Previdência Social. Para que isso aconteça, terão que recolher por conta própria o valor do carnê do INSS referente à diferença entre a remuneração recebida e o salário mínimo mensal. O que, para uma pessoa em situação de vulnerabilidade social, é difícil de acontecer.
Para permitir que o texto da Reforma Trabalhista da Câmara dos Deputados passasse pelo Senado Federal sem alterações, o que levaria mais tempo de debate, houve um acordo em que o Palácio do Planalto se comprometeu a editar uma Medida Provisória “suavizando” algumas porradas presentes na proposta. E assim foi feito, mas esqueceram de combinar melhor com os russos. A Câmara, que não tinha interesse na mudança do texto que ela mesma havia aprovado, deixou a MP caducar.
Com isso, voltou a valer a multa ao trabalhador em jornada intermitente que, quando convocado, não possa aparecer. E a proibição de que um funcionário com contrato normal não pode ser demitido e recontratado como intermitente sem um prazo de quarentena de, pelo menos, 18 meses.
O governo prometeu um novo decreto que resolva as partes mais graves, encaminhando a discussão do restante para o Congresso Nacional. Mas dificilmente a proposta vai avançar em ano eleitoral.
Magistrados da Justiça do Trabalho ouvidos por este blog disseram que, mais cedo ou mais tarde, isso vai colidir com a própria Constituição Federal. Ou seja, o Supremo Tribunal Federal vai ser chamado a decidir se os novos termos de contrato são ou não constitucionais. E essa é a segunda tragédia anunciada.
Em seu artigo 7o, a Constituição afirma que o salário mínimo deve ser capaz de atender às necessidades vitais básicas de trabalhadores e de suas famílias (inciso IV) e, ao mesmo tempo, prevê a garantia de salário, nunca inferior ao mínimo, para os que recebem remuneração variável. A discussão se esse mínimo poderá ser considerado em horas e não por mês será uma das grandes discussões jurídicas dos próximos anos.
Quando esses conflitos começarem a chegar ao Poder Judiciário, o risco de contratos serem declarados nulos por não atingirem uma remuneração mínima mensal é real. Quem mais deve usar esse tipo de jornada intermitente são pequenos comércios, bares, restaurantes, buffets. Se a Justiça for acionada por empregados insatisfeitos ou seus sindicados e declarar a nulidade de contratos ou afirmar que deve ser paga a diferença, garantindo um mínimo mensal, essas empresas terão um grande problema. Quem vai arcar com o prejuízo delas? O governo federal? O Congresso Nacional?
O governo Michel Temer, sua base de apoio no Congresso Nacional e associações empresariais martelaram, dia e noite nos veículos de comunicação, que, com a Reforma Trabalhista, leite e mel correria para dentro das carteiras de trabalho após as mudanças passarem a valer, em novembro passado. Mas isso não se concretizou. Pelo contrário, a crise econômica continua gerando postos de trabalho precarizados, que não garantem direitos básicos, sejam eles informais ou formais via contratos de jornada intermitente.
Dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD) Contínua, divulgados, em junho pelo IBGE,apontam que o contingente de empregados no setor privado com carteira assinada (incluindo trabalhadoras empregadas domésticas), com universo estimado em 32,8 milhões de pessoas, perdeu 351 mil pessoas (-1,1%) no trimestre entre março e maio em comparação a dezembro de 2017 a fevereiro de 2018. E em relação ao período entre março a maio de 2017, ou seja, um ano antes, houve variação de -1,5% (-483 mil pessoas).
Enquanto isso, entre março a maio de 2018, os empregados no setor privado sem carteira assinada (11,1 milhões de pessoas) aumentaram em relação ao trimestre anterior em 307 mil pessoas (2,9%). Em relação ao mesmo trimestre do ano anterior, o contingente cresceu 5,7% ou 597 mil pessoas. É claro que, para um trabalhador em situação de desespero, trabalho precário é trabalho mesmo assim e ajuda a pagar as contas no final do mês e sustentar a família. Mas esse tipo de serviço não garante o pacote básico de proteção para ele ou ela e sua família, mantendo-os em um grau preocupante de vulnerabilidade social e econômica.
Reportagem de Laís Alegretti, na Folha de S.Paulo, aponta que dentre as poucas vagas formais que estão sendo geradas, aquelas baseadas em contratos intermitentes perfazem cerca de 10% do total. Sem elas, o saldo de vagas CLT estaria no vermelho entre novembro e maio segundo os números do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged).
O crescimento na informalidade pode ser uma etapa anterior à geração de empregos formais. Mas o que estamos vendo, inclusive com o ainda lento crescimento da jornada intermitente, pode ser uma mudança no sistema de emprego. Em que os ônus relacionados à manutenção da mão de obra são transferidos ao trabalhador e para os pequenos empresários, enquanto os lucros ficam nas mãos de grandes corporações.
Muita água vai passar por baixo das pontes dos Tribunais Regionais do Trabalho, do Tribunal Superior do Trabalho e do Supremo Tribunal Federal ainda até que os entendimentos sejam pacificados. Mas sabe aquela história de que a Reforma Trabalhista veio resolver a insegurança jurídica? Então, difícil imaginar como se pode apagar fogo com gasolina.
Leonardo Sakamoto